"UMA COISA DE QUE NÃO SE FALA, NUNCA EXISTIU. SÓ A PALAVRA DÁ REALIDADE ÀS COISAS." Oscar Wilde

2º Capítulo

Acordara sobressaltada. A angústia que se havia instalado em si há já longo tempo, interrompera de súbito o seu sono. Objectos não identificados giravam de forma aleatória à sua volta e estranhos seres gritavam palavras imperceptíveis aos seus ouvidos, enquanto gotas de suor nasciam da sua pele translúcida e o seu peito crescia cada vez mais e mais e mais até, simplesmente, soltar um grito desesperado. “Chega”. Lá fora o sol brilhava. Era mais uma manhã de Maio como tantas outras. A multidão apressava-se numa correria infernal de casa para o trabalho, o trânsito fluía com a dificuldade de sempre, os condutores buzinavam a cada automóvel que não passava o primeiro segundo do sinal vermelho do semáforo e os jovens distribuidores dos diários informativos infiltravam-se, estrategicamente, por entre as viaturas, tentando a todos chegar, sem contudo nenhum atropelar. Lá dentro, o temporal teimoso teimava em não abrandar. A chuva transformara-se em granizo, a neblina em negras nuvens, o silêncio em trovoada e a luz amena em flashes de terror. Tentou abstrair-se dos perigosos tumultos que a assombravam e que transformavam o seu coração num autêntico bombardeiro pronto a disparar. Esticou o leve braço, puxou do comando e ligou a televisão: a Isabel insultava, compulsivamente, o namorado que a tinha traído, na quarta repetição da mesma novela; no canal desportivo, um novo recorde tinha sido batido nos 200m costas; a crise de meia idade levara uma senhora a aceitar ser filmada enquanto era sujeita a uma operação cirúrgica que a faria regressar à eterna juventude; uma mulher tinha detonado um engenho explosivo na cidade iraquiana de Kerbala, fazendo pelo menos 32 mortos e 50 feridos. Nada de novo, portanto. Desligou a televisão, olhou para o telemóvel mas nenhuma chamada, nenhuma mensagem. Levantou-se bruscamente. Vestiu a roupa que estava mais à mão a arranjou o cabelo de forma desajeitada. Colocou uma bijuteria barata, deslizou um risco preto no contorno dos seus olhos, umas pequenas gotas de perfume e vestiu o casaco. Estava pronta e assim saiu. Os raios de sol de imediato feriram-lhe, violentamente, os olhos que, não resistindo, soltaram as últimas lágrimas que lhe restavam. Tudo à sua volta parecia acontecer demasiado rápido. O ruído era ensurdecedor e caótico, contrastando com o seu ar jovial e sereno que sempre a marcara e que a todos encantava. Fixou diversos sítios estratégicos ao longo da sua vista periférica e acabou por dirigir-se ao café mais próximo, onde, ocasionalmente, tomava a sua obrigatória dose de cafeína diária. Entrou cuidadosamente e olhou à sua volta. À entrada do café, revistas e jornais do dia, para entretrer e informar os clientes mais folgados. Escolhera uma publicação à sorte e dirigiu-se para uma das mesas que se encontrava mesmo junto à janela. Fez o pedido habitual e começou a folhear as páginas da revista que, aleatoriamente, seleccionara. As suas mãos não largavam o maldito telemóvel, enquanto escrevia rápidas mensagens, esperando por simultâneas respostas. Escondida e disfarçada, ia desviando o seu olhar para as páginas, entre anúncios de perfumes, produtos dietéticos e notícias cor-de-rosa. Nada de novo, portanto. “Agora a sério… divirta-se.” De súbito, um em particular fê-la parar. Publicidade de uma marca de whisky. Não reparara qual, não interessava sequer. Como que por breves fracções de segundo a tivessem tirado da inquietação que nela habitara. Teria ela esquecido de se lembrar da simples sensação do que era esquecer e, simplesmente, se divertir? “Passei metade da minha vida a preocupar-me com coisas que nunca aconteceram…”, pensara ela. Confusa e atordoada, ergueu a cabeça, cerrou os olhos e em posição defensiva, mirou. Estariam todos aqueles sujeitos que a rodeavam e que lhe pareciam um só, envoltos em constantes pensamentos e sobressaltados que, como ela, se esforçavam em disfarçar? Não compreendia. Tão simples, tão complexo e nenhuma solução. Eis que, repentinamente, o telemóvel toca. As inquietações que, rapidamente, haviam nascido dentro de si, também, rapidamente, se esvoaçavam para sítio incerto. Só tempo houve de rasgar o pedaço de papel do anúncio, colocá-lo, distraidamente, no bolso do casaco e tirar os trocos suficientes que deixou em cima da mesa. Levantou-se, apressadamente, e saiu. Afinal, o dia não estava perdido. (Joana D. Pedrosa)

Há vida, cá dentro

Há vida, cá dentro

A lente de Oscar Wilde

A lente de Oscar Wilde

A segunda lente de Oscar Wilde.

A segunda lente de Oscar Wilde.

Notas Soltas

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